terça-feira, 28 de abril de 2020

A COVID-19 está mudando a ciência, e para melhor: a pandemia está nos obrigando a tornar a pesquisa mais aberta, mais eficiente e mais colaborativa


A pandemia de coronavírus é uma crise terrível, é claro. Mas também apresenta uma oportunidade para mudar a maneira como a pesquisa é conduzida e compartilhada, para que a ciência possa se tornar mais aberta, mais eficiente e mais colaborativa.
Na ResearchGate, uma rede profissional de cientistas que defende a pesquisa aberta, somos otimistas e pragmáticos. Estamos trabalhando por um mundo aperfeiçoado pela ciência. Descobertas científicas são necessárias, agora e no futuro.
O modo como os pesquisadores estão respondendo à COVID-19 agora pode servir como um ensaio para esse futuro. Os cientistas que publicam dados, idéias e informações relacionadas à pandemia de coronavírus no ResearchGate, por exemplo, estão indo contra contra os velhos padrões da cultura científica.
É muito mais provável que os pesquisadores publiquem pesquisas em estágio inicial numa plataforma do que costumamos ver em outros canais. Eles estão publicando conteúdos mais curtos, mais concisos e com mais dados. É realmente emocionante ver os pesquisadores divulgando cada vez mais as pré-impressões dos seus artigos. A urgência e a extensão desta crise está incentivando a comunidade global de pesquisadores a um compartilhamento maior, ultrapassando disciplinas, domínios e setores mesmo enquanto as fronteiras permanecem fechadas. O vírus Sars-CoV-2 não respeita fronteiras, então devemos apoiar os pesquisadores para que seu trabalho não seja limitado por elas.
A maneira como uma pesquisa é validada e compartilhada não mudou muito nas últimas décadas, ou talvez nem tenha mudado ao longo do último século. Ainda confiamos em sistemas misteriosos de revisão por pares e o simpósio ou conferência presencial ainda é o principal meio para trocar conhecimento. A crise da COVID-19 desafia ambas as tradições: a primeira porque o sistema é muito lento (pode levar de seis a nove meses para que o manuscrito de um cientista seja revisado por pares e apareça em uma revista) e a segunda porque não é mais segura. Precisamos tentar novas maneiras de fazer as coisas, em tempo real, e as idéias que funcionam neste momento de crise nos servirão bem no futuro. O ritmo exigido de nós neste momento nos trarão a chance de viver mudanças, tanto em pequena quanto em larga escala.
Na ResearchGate, trabalhamos constantemente para melhorar a produtividade científica e permitir descobertas que são muito relevantes. A COVID-19 está nos incentivando a fazer o possível para apoiar os pesquisadores a se tornarem mais eficientes e mais abertos. Precisamos nos conectar com todos os atores da ciência para promover essa mudança: financiadores, editores, instituições e até nações precisam se unir e repensar o que a ciência poderia ser, e como ela poderia – e deve – gerar o desenvolvimento de sociedades que sejam mais inteligentes, mais inclusivas e mais resilientes.
O futuro da ciência é certamente internacional, interdisciplinar e aberto. Sob a ótica da COVID-19, iniciativas como a a Coalizão por Inovações para Preparação contra Epidemias (CEPI) destacam-se como líderes no sentido de aproximar doadores, filantropos e empresas nacionais para resolver problemas. Existem também muitos exemplos de colaborações interdisciplinares e internacionais que dão esperança em nossas habilidades de criar uma nova cultura da ciência, desde o CERN (física) ao Atlas de Células Humanas (genômica). A própria página da comunidade COVID-19 da ResearchGate foi projetada para incentivar a colaboração interdisciplinar em torno da pandemia de coronavírus.
As ferramentas que desenvolvermos durante a crise do COVID-19 devem nos equipar para trabalhar juntos para além das fronteiras, a fim de enfrentar futuras crises. Nossa atuação coletiva diante das mudanças climáticas, por exemplo, tem sido lamentavelmente inadequada até o momento. Vamos usar essa crise para aprender a melhorar a ciência, e vamos perseverar juntos nesses esforços até depois da crise. Este momento é uma oportunidade para pavimentar os novos caminhos que seguiremos amanhã.
Ijad Madisch, cofundador e CEO do Research Gate.
Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a opinião de Scientific American
Publicado em 23/04/2020

 Shutterstock

Fonte: Scientific American Brasil: https://sciam.uol.com.br/a-covid-19-esta-mudando-a-ciencia-e-para-melhor/

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Se falharmos na proteção à economia, os impactos da COVID-19 sobre a saúde continuarão no futuro Um colapso na economia gera consequências severas para a saúde pública, e precisamos nos preparar elas


A pandemia de COVID-19 é, em primeiro lugar, e mais importante de tudo, uma crise de saúde. Entretanto, está rapidamente se tornando uma crise econômica também. Essa não é, certamente, a primeira crise econômica global. Mas desta vez é diferente.
O século 20 vivenciou a quebra da bolsa de Wall Street em 1929 e a crise do petróleo em 1973, assim como numerosas crises regionais no oeste da Ásia, na antiga União Soviética e na América Latina. Os primeiros anos do século 21 viram a crise financeira global, que começou em 2007. Cada uma dessas crises foi estudada em detalhes e, enquanto economistas e políticos podem discordar sobre como responder a elas, geralmente a partir de sua perspectiva ideológica, existe pelo menos um alcance das medidas que podem ser selecionadas.
Os estudiosos das crises econômicas há muito traçam paralelos com a biologia, desenhando especialmente com a ideia de contágio, usada inicialmente para explicar o estirão de falências bancárias na década de 1920. John Maynard Keynes, baseando-se em antigos filósofos, falou da confiança no mercado como um “espírito animal”.
Entretanto, tais conceitos estavam sendo usados para explicar as ações das pessoas, ações que poderiam ser influenciadas por declarações e ações de políticos, para melhor ou pior. Estas ainda possuem algum valor. Um tweet do Presidente Donald Trump, disparado tarde da noite, pode colocar o mercado em queda-livre. Entretanto, tais conceitos não influenciam um vírus — que não segue o Presidente no Twitter.
Há pouco mais de uma década, alguns governos executaram experimentos de grandes proporções com suas populações. Cada um deles optou por adotar ou não medidas de austeridade no rescaldo da crise financeira global. O resultado foi que muitos de seus cidadãos, que anteriormente se sentiam seguros, passaram a encarar vidas extremamente precárias. Cada vez mais, viram-se tendo que sobreviver um mês de cada vez, encarando a insegurança do desemprego, renda, moradia e até mesmo de comida.
Países como Grécia, Itália, Espanha e, após 2010, o Reino Unido, que optaram por implementar medidas de austeridade ou tiveram tais medidas impostas a eles, ou que sofreram a perda de indústrias tradicionais, registraram uma piora em suas condições de saúde, em geral sob a forma das chamadas “doenças do desespero” como mortes e suicídios relacionados a álcool e drogas. Estima-se que 10 mil suicídios ocorreram após a crise financeira global de 2007. No Reino Unido, onde bancos alimentares eram virtualmente uma ideia ignorada, houve um aumento em massa de pessoas procurando por apoio emergencial de comida, particularmente nas áreas atingidas pela austeridade. Em diversos países, especialmente nos Estados Unidos e Reino Unido, a elevação da expectativa de vida foi interrompida.
Também houve consequências políticas. Muitos dos que viviam nas áreas mais atingidas abandonaram antigos representantes para votarem em agendas populistas, e isso levou a políticas que posteriormente iriam lhes causar danos.
Entretanto, não foi o que aconteceu em todos os lugares. Países como Alemanha, Holanda e, antes das eleições de 2010, o Reino Unido, rejeitaram a austeridade e buscaram estimular a economia, geralmente adotando também medidas para proteger os mais vulneráveis, como os que que já eram adotadas há tempos em países escandinavos. Assim, enquanto em muitos países europeus o aumento em suicídios seguiu em paralelo com o aumento do desemprego, em alguns essa associação foi rompida. Esses foram os países que buscaram dar a seu povo esperança — por exemplo, com políticas que facilitam a volta ao trabalho em caso de demissão, ou que os protege contra a perda de moradias.
Uma crise econômica virá após o surto. Hoje, os políticos terão de tomar decisões difíceis, mesmo dispondo de informações insuficientes. As medidas necessárias para conter o vírus, incluindo o isolamento de trabalhadores e consumidores, o fechamento de fábricas e lojas e o banimento de eventos esportivos e atividades de entretenimento têm efeitos negativos. Os políticos estão se voltando para os especialistas em saúde pública em busca de auxílio nessa crise, como exemplificado pela figura de Anthony Fauci ao lado do Presidente dos Estados Unidos, ou o primeiro ministro do Reino Unido sendo cercado pelo Chefe do Gabinete de Medicina e o Chefe da Divisão de Ciência. Pelo menos no caso do Reino Unido, cujo governo abriga ministros que recentemente proclamaram que o povo britânico “já teve o suficiente de especialistas”, essa é uma grande mudança.
O problema é que a orientação que os especialistas estão trazendo impõe uma imediata ameaça a economia. Isso é muito importante. O declínio econômico por si só tem um efeito adverso na saúde. A redução na atividade econômica diminui a circulação de dinheiro, e também o recolhimento de impostos. Isso reduz as finanças disponíveis para as contramedidas de saúde pública necessárias para controlar a pandemia. Também atinge indivíduos e famílias, que podem ver suas rendas despencarem catastroficamente. As empresas, uma vez esgotadas suas economias, irão fechar, com consequências para seus donos, funcionários e fornecedores.
Na China, onde a COVID-19 atingiu primeiro, a produção industrial caiu cerca de 13,5% e as vendas a varej caíram 21%. Alguns setores entraram quase inteiramente em colapso. A venda de carros caiu em 92%, e as vendas dos restaurantes caíram 95%. A Goldman Sachs previu que a economia dos Estados Unidos pode diminuir cerca de 24% no segundo quarto de 2020, mais do que o dobro de qualquer declínio já registrado.
Provavelmente, um surto que requer distanciamento social e quarentena para ser controlado vai apresentar num contexto no qual existe uma força de trabalho com acesso a sistema de saúde gratuito e proteção de renda, uma evolução muito diferente da que seria vista numa situação onde a maioria dos empregados têm empregos com pouca estabilidade e as pessoas devem escolher entre trabalhar doente ou passar fome.
A emergente economia global aumenta a fragilidade dessa situação. Um produtor de ventiladores em Sheffield, Detroit ou Dusseldorf pode depender de componentes especializados fabricados em de Shanghai, Manila e Kuala Lumpur. Se algum desses não tiver condições de entregar os produtos, o processo inteiro pode entrar em colapso. Além disso, assim como qualquer sistema complexo, o resultado pode depender muito das condições iniciais.
Acessar a escala de danos econômicos se tornou mais difícil porque ninguém sabe quanto tempo vão durar as restrições às atividades econômicas. A economia atua como um sistema adaptativo complexo. Portanto, inclui um degrau de resiliência, que lhe permite reagir a um choque. Entretanto, em certo ponto, o mecanismo compensatório pode quebrar. Quando uma companhia fecha, ela pode nunca mais reabrir. A mão de obra especializada da qual ela depende pode se perder. Contudo, há muita incerteza no surto que enfrentamos. Previsões sugerem que a pandemia pode durar alguns meses, ou até mesmo um ano em muitos países. Pode haver tanto uma onda do vírus quanto várias.
Mesmo que seja difícil estimar a escala e a natureza da pandemia e da retração econômica que ela trará, há poucas dúvidas de que existe o risco real de uma espiral viciosa negativa de doença e empobrecimento. Novas pesquisas, que estavam em andamento, podem ser adiadas. Pessoas podem ter de interromper seus estudos. Investimentos que de outra form teriam sido feitos foram colocados em compasso de espera. E muitas pessoas terão suas vidas mudadas para sempre, geralmente para pior.
Como proteger a economia? O que podemos aprender dessa lição? Como evitar um retorno às piores consequências das crises globais? Medidas comumente usadas por governos e bancos centrais, tal como diminuir taxas de juros ou implementar incentivos fiscais, têm alcance limitado. No máximo, podem mitigar os efeitos. Aqui propomos três conjuntos de medidas que, nós acreditamos, pode ajudar as sociedades a se recuperar uma vez que essa pandemia estiver terminado. Salvar vidas.
Essa é a primeira e mais óbvia prioridade. A infecção pelo vírus deve ser contida, e as mortes associadas a ele devem ser reduzidas, o mais rápido possível. A escala de medidas tomadas para atingir tal contenção vai influenciar no estágio da pandemia e a capacidade de intervir, especialmente se houver funcionários do sistema de saúde e instalações de laboratórios capazes de responder à alta demanda por trabalho. Agora não é a hora para ministros da economia que contam as moedas, e as agência de financiamento devem reconhecer que haverá a necessidade de mais financiamento. Será essencial que os planejadores das contra-medidas de saúde reconheçam que existirão efeitos saúde diretos e indiretos na saúde, afetando particularmente aqueles que vivem sozinhos, aqueles que são idosos, que problemas mentais ou que são moradores de rua, assim como os que estão em instituições como asilos de idosos, prisões e centros de detenção de imigrantes. Importante, um novo estudo a respeito do grande surto de influenza em 1918 descobriu que, em 43 cidades estudadas nos Estados Unidos, aquelas que impuseram restrições a interações sociais mais cedo e as mantiveram por mais tempo vivenciaram uma recuperação posterior mais forte. Por isso, os autores rejeitam a ideia de uma opção entre medidas de saúde pública estritas e danos a economia. Proteção contra riscos financeiros, já. Como há um colapso em andamento na economia, a responsabilidade da proteção contra riscos financeiros deve recair sobre os governos. Assim como, nos tempos de guerra, os governos reconhecem que devem encontrar uma forma de obter mais dinheiro, eles devem marchar contra esse inimigo comum —um microorganismo, ao invés de outras nações — porque a ameaça à população que ele representa é tão grande quanto. Os políticos de muitos países responderam ao desafio, geralmente jogando regulamentações fiscais já estabelecidas pela janela. O pacote de dois trilhões de dólares, promulgado nos Estados Unidos, não tem precedentes; mas muitos países europeus, incluindo o Reino Unido, França e Dinamarca, se movimentaram para pagar uma larga proporção dos salários das pessoas que estão em risco de perderem seus empregos. Isso é crucial para afastar danos permanentes e impedir que a recessão escale para uma depressão total. Os temores com o endividamento do governo, que foram utilizados para justificar austeridade uma década atrás, foram colocados de lado. Preparar a recuperação.Isso significa garantir o futuro das companhias, em particular as pequenas e médias, as quais possuem um papel importante na economia, para que estejam prontas para atender a demanda que um dia retornará. Nos tempos pré-industriais, a economia precisava, simplesmente, de uma grande quantidade de mão de obra. 
Na moderna economia do conhecimento, tanto a manufatura quanto o setor de serviços dependem de uma mão de obra muito qualificada. Uma vez que esse conhecimento se perde, a recuperação pode ser impossível. Isso requer medidas para abastecer companhias com “bóias” financeiras, tais como os empréstimos sem juros providenciados por alguns governos, assim como aqueles recursos que diminuem os custos das empresas. Exemplos disso incluem isenção de impostos e empréstimos sem juros, além do apoio financeiro para manter os empregados sob licença.
Essa proteção também deve estar alerta contra aqueles que buscam se beneficiar da crise. Por toda a história, crises encorajaram pessoas a lucrar com métodos antiéticos. Nesse surto, já houve muitos relatos de aumentos grandes no preço de produtos como desinfetantes e equipamento de proteção. Outros que exploram a crise são os credores, que aumentam suas taxas de juros. Esse fenômeno aponta para a importância de o governo controlar os preços. Outro grupo que tende a se beneficiar são especuladores da bolsa de valores. Algumas pessoas já conseguiram um lucro enorme dessa pandemia, o que levanta, em alguns casos, questões sobre informações de bastidores. Entretanto, é importante lembrar que o lucro dessas pessoas é a perda de outras pessoas, e geralmente a parte mais pobre da sociedade é mais atingida.
E há aqueles que vão aparecer após a pandemia e tirar vantagem daqueles que estão desesperados por dinheiro e não tem opção mas vender seus negócios. Uma empresa líder de capital privado já explicou como “durante e após essa crise, empresas [de capital-privado] serão presenteadas com oportunidades únicas para investir”, aproveitando-se das empresas que não conseguem pagar suas dívidas.
Finalmente, conforme descrito por Naomi Klein em seu livro “The Shock Doctrine”, há o perigo de que políticos, em geral ligados a vastos interesses poderosos, usem da crise para minar proteções para o trabalhador, a saúde e o meio-ambiente, gerando grandes consequências para a saúde. Isso parece que já está acontecendo nos Estados Unidos, com regulamentações ambientais importantes sendo revogadas.
Aprendendo agora com os erros. Mesmo que haja a necessidade imediata de responder à crise que já está em marcha, o contexto político e econômico que trouxe o mundo até aqui não deve ser ignorado. Uma razão para que a pandemia da COVID-19 terá, e já teve, um impacto econômico tão sério, é que os países organizaram suas sociedades de uma maneira que os deixou extremamente vulneráveis. Construíram uma estrutura de recompensa que beneficia uma elite pequena e seleta, enquanto desvaloriza aqueles dos quais a elite depende para se manter segura. 
Por quatro décadas, muitos países enfraqueceram suas organizações de trabalhadores e construíram uma força de trabalho cada vez maior baseada em contratos inseguros, o que levou muitos de seus cidadãos a não terem ideia do quanto vão receber a cada semana. Em alguns países, tal como nos Estados Unidos, muitos pessoas tem acesso apenas ao que há de mais básico, incluindo os cuidados para a saúde. É importante reconhecer que quem dispuser de rendas asseguradas pode se isolar caso fique doentes, aqueles que trabalham sob contratos precarizados devem escolher entre comer ou proteger os demais. Logo, não é surpreendente que alguns políticos, que normalmente não teriam seus interesses aliados aos dos mais frágeis, estão reconhecendo essa interdependência. Trabalhadores que até alguns meses atrás não obteriam um visto, e funcionários que exercem funções não qualificadas, são vistos agora como essenciais. 
É impossível prever o futuro. Entretanto, a constatação de que qualquer um pode ser infectado com o coronavírus que causa COVID-19, seja o primeiro ministro do Reino Unido ou um herdeiro do trono, é um lembrete da vulnerabilidade comum da humanidade. Isso se assemelha ao período pós Segunda Guerra Mundial, quando uma geração observou que qualquer um poderia ser vítima de uma bomba caindo. Por toda a Europa Ocidental, aqueles que sobreviveram à guerra criaram estados de bem-estar social que não buscavam uma igualdade completa, mas garantiam que seriam protegidos contra qualquer ameaça. Ao fazerem suas escolhas políticas, eles se comportavam como se estivessem atrás do que o filósofo John Rawls descreveu como véu da ignorância, sem conhecimento de sua posição no outro lado. Conforme os argumentos do economista político Alberto Alesina e outros, isso nunca ocorreu nos Estados Unidos, onde sempre soube se saberia se uma pessoa era branca ou preta. Em uma pandemia, assim como em uma guerra mundial, todos em seu caminho, ricos ou pobres, são suscetíveis, e ninguém pode se sentir seguro. Isso deve oferecer mais esperança para uma sociedade mais justa e segura. 
Entretanto, cuidado é necessário. Alguns políticos buscaram armar a pandemia, retratando a ameaça como uma brincadeira ou um exagero daqueles que buscam atacá-los. Isso parece estar sendo eficaz. Dados de pesquisa de cada estado dos Estados Unidos, organizados segundo preferências políticas, mostram uma clara diferença entre Republicanos e Democratas quanto à extensão da ameaça da COVID-19. Ainda mais preocupante é ver como as epidemias geralmente fazem com que as pessoas procurem alguém a quem culpar. A Peste Negra na Europa foi acompanhada por perseguições generalizadas, com judeus sendo acusados de envenenar pessoas saudáveis. Trump repetidamente refere-se ao “vírus chinês”, e os políticos do Reino Unido, ainda que não tão descaradamente, também estão apontando o dedo para a China. Entretanto, como um sinal de esperança, também existem evidências de pesquisas on-line de que diminuíram as grandes diferenças, nas áreas de votação de Republicanos e Democratas, no que tange ao tema ” higienização das mãos”.
O mundo está em uma encruzilhada. A pandemia do COVID-19 pode encorajar as pessoas a entenderem que todas dependem umas das outras nesse pequeno planeta, e, independentemente de se tratar de saúde global, desigualdade, ou degradação ambiental, iremos todos nadar ou afundar juntos. Outra possibilidade é que políticos populistas e os vastos interesses que os apoiam, especialmente na mídia de massas, possam usar essa crise para semear divisões, criando fossos entre jovens e velhos, ricos e pobres, doentes e saudáveis, minorias étnicas e populações majoritárias, grupos de imigrantes e de domésticos, enfraquecendo os laços coletivos. 
Aqui pode ser útil de lembrar como, antes da Primeira Guerra Mundial, a presença das mulheres na esfera do trabalho era muito subvalorizada. A contribuição que fizeram foi depois reconhecida na forma do direito ao voto, ainda que tenham tido que lutar por ele. De modo semelhante, o estouro da Grande Depressão, onde tanto ricos e pobres perderam seus bens, levou ao New Deal, incluindo a Seguridade Social, que fundou as origens das redes e pensões de segurança social dos Estados Unidos. 
Será que a a sociedade finalmente vai reconhecer a contribuição daqueles cujo trabalho muitas vezes não é visível? A pandemia da COVID-19 pode ser um ponto de virada, restaurando a fé na ciência e aproximando as pessoas. Entretanto, isso acontecerá apenas se as vozes dos cientistas e profissionais de saúde forem ouvidas. Política e saúde sempre estiveram ligados e sempre estarão.

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Martin Mckee, David Stuckler, publicado originalmente em Nature
Publicado em 15/04/2020

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Covid-19: plasma de pacientes curados ajudou a tratar casos críticos: Dois estudos chineses mostraram resultados promissores da técnica no combate à pandemia. Mas ainda são necessárias novas pesquisas.


Uma nova arma está se mostrando eficiente na luta contra a pandemia de Covid-19: o sangue de pacientes curados. Médicos chineses reportaram recentemente que pacientes em estado grave tiveram bons resultados após receberem infusões do plasma sanguíneo contendo anticorpos contra o vírus. Esse plasma veio de pessoas que passaram com sucesso pelo tratamento.
Funciona assim: se uma pessoa pega Covid-19 e se recupera da doença naturalmente, isso significa que seu sistema imunológico aprendeu a neutralizar o vírus – e criou anticorpos específicos para ele. Transferir o plasma sanguíneo (a parte líquida do sangue onde ficam os anticorpos, excluindo a maior parte das células) dessas pessoas para pacientes doentes pode oferecer uma linha de batalha imediata contra o invasor. A ideia aqui é que não seja uma cura definitiva, mas algo que alivie os sintomas e ganhe tempo para o corpo do próprio paciente lutar contra a infecção e criar seus próprios anticorpos.
Essa estratégia é conhecida como “terapia passiva de anticorpos”, porque fornece os anticorpos prontos para o paciente. É diferente de uma abordagem ativa, como no caso das vacinas, em que o corpo da pessoa é induzido a produzir os anticorpos por conta própria.
A técnica não é novidade – sabe-se há mais de um século que anticorpos de outras pessoas podem ajudar a combater patógenos, e inclusive já foi utilizada no contexto de outras doenças, como gripe espanhola e a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) – causada por um vírus da mesma família do causador da Covid-19. Mas ela nem sempre dá certo. E isso acontece por uma série de motivos, entre eles o fato de que nem sempre apenas a quantidade injetada de anticorpos dá conta de combater a infecção. Por isso, ela sempre tem que ser testada para novas doenças e não é uma carta na manga garantida. No contexto da ebola, por exemplo, a terapia passiva de anticorpos não foi muito eficiente.
No caso da Covid-19, várias equipes em todo o mundo já começaram testes com a técnica para saber se é efetiva, incluindo no Brasil. Como reportamos na SUPER, os Estados Unidos aprovaram o tratamento de forma emergencial para pacientes em estado crítico, assim como Reino Unido e outros países vêm fazendo. Mas os resultados dessas experiências, até agora, além de escassos, têm sido insuficientes para cravar a efetividade da terapia.
Recentemente, duas equipes separadas de médicos chineses publicaram recentemente estudos preliminares que mostram resultados positivos da técnica. Na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, pesquisadores da cidade de Wuhan descrevem como o tratamento usando plasma sanguíneo de pacientes curados ajudou 10 pacientes em estado crítico a melhorarem em apenas três dias, sendo que a carga viral caiu rapidamente e os sintomas se amenizaram.
Outra equipe de médicos da cidade chinesa de Shenzhen demonstrou resultados semelhantes com cinco pacientes críticos, dos quais três conseguiram respirar sem aparelhos após 10 dias do início do tratamento. Os detalhes desse segundo estudo foram publicados na revista Journal of the American Medical Association.
Os resultados são bastante animadores, mas ainda não são definitivos, como os próprios cientistas destacam. Isso por que ainda são necessários mais testes, com amostragens maiores e controladas por placebo para poder afirmar que a transfusão é um tratamento realmente viável. No caso dos estudos publicados, a prioridade era salvar a vida dos pacientes críticos, então outras abordagens foram utilizadas ao mesmo tempo da terapia de anticorpos. Então não dá para saber se ela foi de fato a única responsável pela melhora. Espera-se que os resultados de outros estudos saiam nas próximas semanas em diversos países, dando mais detalhes sobre a eficácia e segurança dessa técnica.
Por Bruno Carbinatto

  (Mikhail Tereshchenko/Getty Images)

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Gene mais ativo em doença crônica pode explicar risco de quadros graves de covid-19: estudo da USP investigou relação entre o novo coronavírus e problemas como hipertensão, doença pulmonar e insuficiência renal


Um gene bastante ativo nos pulmões de pessoas que sofrem de problemas crônicos como hipertensão e doença pulmonar obstrutiva pode ser a chave para entender por que estes pacientes têm maior risco de desenvolver quadros graves de covid-19. E também pode ser a chave para o desenvolvimentos de medicamentos contra a doença. É o que sugere um grupo de cientistas da USP em um artigo compartilhado no repositório medRxiv em formato preprint (que ainda não foi revisado por cientistas externos).
Usando técnicas de bioinformática e uma abordagem da biologia de sistemas, os pesquisadores investigaram se a expressão de um gene chamado ACE2 em células do pulmão é diferente para pacientes de doenças crônicas e para indivíduos saudáveis. Quando um gene está mais expresso, significa que ele está ativo e produzindo a proteína que codifica.
Segundo Helder Nakaya, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP e coordenador da pesquisa, como o Sars-CoV-2, o causador da covid-19 é um vírus novo para os cientistas, as hipóteses do estudo foram formuladas a partir do que se sabia sobre o coronavírus que causou a epidemia de Sars em 2003. Já se sabia daquela época, por exemplo, que o ACE2 usava a proteína codificada pelo ACE2 para infectar células humanas. No começo de março, uma equipe alemã demonstrou, em um trabalho publicado na revista Cell, que o vírus Sars-CoV-2 infecta as células do pulmão seguindo o mesmo caminho de seu parente mais velho.
Nakaya lembra que, durante a epidemia de Sars, os cientistas aprenderam muito sobre o coronavírus, mas as pesquisas sobre o tema ficaram mais escassas com o passar dos anos. “Olhando em retrospecto, isso é uma falha. Deveríamos ter continuado pesquisando a Sars, porque já se sabia que uma hora ou outra haveria uma epidemia de novo”, avalia o professor.
Para comparar a expressão de ACE2 em pacientes com doenças crônicas e os indivíduos do grupo controle, os pesquisadores da USP trabalharam com dados públicos da plataforma Medline. Eles levantaram mais de 8 mil artigos científicos indexados na plataforma que abordavam as doenças de interesse para o estudo, incluindo hipertensão, diabete, doenças cardiovasculares, doenças pulmonares, insuficiência renal crônica, câncer de pulmão e até tabagismo. Na sequência, mineraram os textos do levantamento inicial para filtrar apenas aqueles que tratavam dos genes relacionados a cada doença – entre eles, estava o ACE2.
A partir dos dados desses artigos, os pesquisadores puderam analisar mais de 700 transcritomas de amostras pulmonares de pacientes com comorbidades associadas à covid-19. Transcritoma é um conjunto de moléculas de RNA. Por serem transcrições de pedaços do DNA, essas moléculas permitem aos cientistas identificar os genes que estão ativos em uma determinada célula. A quantidade de moléculas de RNA idênticas também é relevante, porque permite que os pesquisadores determinem quais genes estão mais ou menos expressos – ou seja, produzindo mais ou menos proteína.
O grupo liderado pelo professor da FCF descobriu que o gene ACE2 estava altamente ativo em pacientes com essas doenças, quando comparados ao grupo controle. A única doença crônica que ficou de fora foi a diabete tipo 2, pois não havia na base usada pelos pesquisadores dados para fazer a comparação.
Agora, a hipótese é que, quanto mais ativo estiver o ACE2, nas células dos pulmões, maior a chance de uma pessoa desenvolver um quadro severo de covid-19. Para provar a associação, no entanto, ainda faltam experimentos de laboratório, já que o estudo foi feito em computadores. Nakaya conta que foi uma primeira experiência de trabalho totalmente não presencial, da qual participaram vários pesquisadores. “Todo mundo conectado, coordenado on-line e usando dados públicos para criar hipóteses e usar as ferramentas e conjuntos de dados certos”, conta o professor.
Além da associação entre o gene ACE2 e as comorbidades para a covid-19, os pesquisadores também encontraram outros genes que podem ter papel importante na infecção pelo novo coronavírus e são potenciais alvos para o desenvolvimento de medicamentos. “A gente também foi procurar saber quais eram os genes associados ao ACE2, que regulam o ACE2”, diz Nakaya. Um deles, o RAB1A, é conhecido por seu papel em infecções por outros vírus. Entre os demais genes, alguns ainda estão envolvidos em processos epigenéticos.
Os resultados do estudo trazem desdobramentos. De acordo com o coordenador, o grupo já está investigando a relação da covid-19 com outros tecidos do corpo humano e outras doenças. “Estamos analisando amostras de mucosa nasal de crianças, adultos e idosos para ver se os níveis do gene aumentam com a idade”, contou Nakaya ao Jornal da USP. “Vamos olhar para outros genes também. Estou apostando no RAB1A, que pode ser interessante porque existe evidência para outros vírus”, completa ele.
Por Silvana Salles

O gene ACE2 expressa o RNA mensageiro que orienta a produção da enzima usada pelo novo coronavírus para infectar as células do pulmão – Foto: Wikimedia Commons



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