quinta-feira, 8 de março de 2012

As mulheres na ciência brasileira: crescimento, contrastes e um perfil de sucesso

por Jacqueline Leta.

HISTORICAMENTE, a ciência sempre foi vista como uma atividade realizada por homens. Durante os séculos XV, XVI e XVII, séculos marcados por diversos eventos e mudanças na sociedade que possibilitaram o surgimento da ciência que conhecemos hoje, algumas poucas mulheres aristocráticas exerciam importantes papéis de interlocutores e tutores de renomados filósofos naturais e dos primeiros experimentalistas. Não obstante suas qualidades e competências, não lhes era permitido o acesso às intensas e calorosas discussões que aconteciam nas sociedades e academias científicas, que se multiplicaram no século XVII por toda a Europa e tornaram-se as principais instituições de referência da ainda reduzida comunidade científica mundial. No século XVIII, essa situação pouco se modificou e o acesso das mulheres a essa atividade, com poucas exceções, deveu-se principalmente à posição familiar que elas ocupavam: se eram esposas ou filhas de algum homem da ciência podiam se dedicar aos trabalhos de suporte da ciência, tais como, cuidavar das coleções, limpar vidrarias, ilustrar e/ou traduzir os experimentos e textos. O século seguinte é marcado por ganhos modestos no acesso de mulheres às atividades científicas, como a criação de colégios de mulheres, mesmo assim, elas permaneceram às margens de uma atividade que cada vez mais se profissionalizava. A mudança nesse quadro inicia-se somente após a segunda metade no século XX, quando a necessidade crescente de recursos humanos para atividades estratégicas, como a ciência, o movimento de liberação feminina e a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres permitiram a elas o acesso, cada vez maior, à educação científica e à carreiras, tradicionalmente ocupadas por homens1

Os estudos sobre as mulheres na ciência

A primeira obra mais detalhada sobre a participação e realização de mulheres na ciência foi Women in Science, escrita, em 1913, por H. J. Mozans, um padre católico. Segundo Schienbinger (2001) essa obra convidava "as mulheres a atuarem no empreendimento científico e desencadearem as energias de metade da população do planeta". A partir daí, a literatura sobre gênero na ciência cresceu, ainda de forma incipiente, até os anos de 1970, ganhando destaque e importância entre os acadêmicos, principalmente, a partir dos anos de 1980. Analisada e discutida por estudiosos de diferentes áreas, sejam eles historiadores, sociólogos, biólogos, críticos culturais e filósofos e historiadores da ciência, essa temática torno-se em pouco tempo uma linha de pesquisa de múltiplas abordagens. Além disso, importante mencionar o papel de órgãos internacionais tal como a da Unesco que, desde a década de 1990, vem realizando estudos, pesquisas e, também, atividades, tal como conferências, que visam a discutir e a propor ações para a maior inclusão das mulheres nas atividades de ciência e tecnologia (C&T).

Dentre os primeiros estudos publicados em periódicos científicos está o de Alice Rossi (Rossi, 1965). Publicado em uma das mais respeitosas revistas científicas do mundo, a Science, o artigo discute a participação de mulheres trabalhando em atividades de C&T nos Estados Unidos, nos anos de 1950 e 1960. Os dados desse estudo mostraram uma participação muito reduzida de mulheres empregadas em atividades de C&T em algumas áreas: nas engenharias, elas representavam cerca de 1% do total de empregados; já nas ciências naturais a participação delas foi de aproximadamente 10%, oscilando entre 5% na física e 27% na biologia. Diante desse quadro, a autora discutia o papel de alguns aspectos sociais e/ou psicológicos que poderiam explicar a baixa participação de mulheres em C&T naquele país, são eles: (a) a prioridade do casamento e da maternidade diante da escolha profissional, (b) a influência dos pais na escolha da carreira de seus filhos, determinando o que devem ser atitudes e comportamentos "femininos" e "masculinos" e (c) incompatibilidades ou diferenças de cunho biológico e/ou social entre homens e mulheres, tal como nas habilidades cognitivas, na questão da independência, de persistência e do distanciamento do convívio social.

Não obstante o fato de retratarem um quadro dos anos de 1960, esses mesmos aspectos aparecem, com maior ou menor destaque, na maior parte da literatura mundial sobre gênero na ciência que tem sido publicada desde então. Além desses, outros aspectos também aparecem freqüentemente nessa literatura, tais como: cientistas do sexo feminino quando comparado com os cientistas do sexo masculino, em geral, (a) têm desempenho/produtividade inferior, (b) têm menor acesso aos altos cargos acadêmicos, (c) recebem recursos menores para pesquisa e (d) recebem salários mais baixos. Obviamente, as causas para tamanhas diferenças e discrepâncias são muito complexas e envolvem múltiplos fatores, sejam eles de ordem social, cultural ou econômica2.

Em relação à literatura brasileira sobre essa temática vale dizer que ela ainda é incipiente e, em geral, de difícil acesso e muito dispersa. Dados sistemáticos como os citados anteriormente não existem para o Brasil. Segundo Lopes (1998), ainda há muito trabalho para ser feito no Brasil, começando por uma sistematização do que existe (publicado) sobre o tema, numa área de estudos que, no país, se caracteriza pela dispersão de suas poucas publicações. De fato, essa literatura não está acessível nem mesmo na principal base de dados da comunidade científica brasileira, o Diretório de Grupos de Pesquisa3. Em uma rápida consulta a essa base foi possível encontrar apenas 21 publicações, em cujo título ou palavras-chaves havia a expressão "gênero e ciência", todas elas publicadas por instituições acadêmicas/científicas em periódicos de circulação nacional. Esse dado sugere pelo menos duas alternativas: ou (a) há poucos estudos e estudiosos nessa temática no Brasil ou (b) há muitos estudos e estudiosos nessa temática no Brasil, mas que estão fora da academia e/ou não utilizam essa ferramenta (a base de dados) para tornar acessível a informação sobre seus estudos.

Dentre os esforços (muitos deles pessoais) realizados para que esses estudos se fortificassem no país, destaca-se o pioneirismo do Núcleo de Estudos so-bre a Mulher. Criado em fins dos anos de 1980, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, esse núcleo estimulou a criação de novos núcleos no país e realizou diversas pesquisas e estudos sobre ciência e gênero, alguns dos quais estão reunidos em O laboratório de Pandora (Fanny, 2002), livro escrito por Fanny Tabak, fundadora do Núcleo e, sem dúvida, um dos expoentes desses estudos no país.

Dentre os poucos estudos brasileiros publicados em periódicos científicos, destaco dois que utilizaram dados objetivos para pautar a discussão sobre alguns aspectos da temática da mulher na ciência, são eles: A construção social da produção científica por mulheres (Velho, 1998) e The Contribution of Women in Brazilian Science: A Case Study in Astronomy, Immunology and Oceanography (Leta, 2003). No primeiro estudo, os autores analisaram e discutiram a participação das mulheres no corpo docente, em cargos administrativos e na produção científica de alguns institutos da Universidade de Campinas. Dentre a evidências, os autores encontraram que as mulheres na Unicamp ainda são minoria em algumas áreas, estão concentradas em outras e avançam lentamente na carreira científica. Em relação ao outro estudo, os autores mostraram que a produtividade de mulheres cientistas é proporcional à participação delas nas áreas analisadas, indicando, portanto, que no Brasil, pelo menos nessas áreas, é mito a afirmativa de que mulheres cientistas produzem menos que homens.

Confira o artigo completo publicado originalmente em Estudos Avançados, v. 17, n. 49, São Paulo, Sept./Dec. 2003, clicando aqui.

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