Se — e quando — conseguirmos obter uma vacina efetiva contra o novo coronavírus, qual pode ser a forma mais justa de distribuí-la? Em um relatório publicado na revista Science, 19 especialistas de saúde pública publicaram um guia ético chamado Modelo de Prioridade Justa. Ele é guiado por três princípios: beneficiar as pessoas e limitar os prejuízos, priorizar países que já estão em desvantagem devido à pobreza ou à baixa expectativa de vida, e evitar a discriminação.
O relatório critica planos anteriores para a distribuição da vacina, incluindo dois que foram propostos pela Organização Mundial da Saúde. Um deles sugeria distribuir as vacinas para cada país de acordo com o tamanho de sua população. O outro priorizaria funcionários de saúde e adultos com mais de 65 anos ou que possuem problemas anteriores de saúde. Algumas propostas de distribuição nacionais, tais como o rascunho de um plano publicado na terça-feira da semana passada pela Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA, também priorizava a distribuição para trabalhadores de saúde e para adultos com outras doenças. Outros planos, incluindo um publicado em maio na Hastings Center Report, argumenta que para decidir quem deveria receber prioritariamente a vacina, os EUA deveriam levar em consideração critérios raciais e socioeconômicos.
Mas os programas nacionais de vacinação podem ser prejudicados se alguma nação decidir estocar mais vacinas do que o necessário. O plano descrito na revista Science visa impedir tais impulsos egoístas por parte das nações. Os autores reconhecem a tendência dos países a colocarem seus interesses próprios acima dos demais, mas argumentam que, em uma emergência global, as responsabilidades internacionais devem ser mais importantes. O plano trata tanto dos impactos imediatos da pandemia — a doença e as mortes — quanto das repercussões de longo prazo, na educação e na economia.
O Modelo de Prioridade Justa inclui três fases. A primeira é projetada para reduzir as mortes prematuras. Para guiar a distribuição durante essa fase, os autores propõem a utilização de um método de saúde métrica chamada Anos Potenciais de Vida Perdida (em inglês, SEYLL), que calcula os anos de vida perdidos em cada país devido à pandemia, ao comparar as mortes prematuras com a expectativa de vida global. A segunda fase propõe outra métrica para quantificar e minimizar as consequências sociais e econômicas da COVID-19. E a terceira prioriza os países com as maiores taxas de transmissão do vírus, mas também assegura a todos os países que no fim recebam vacinas em quantidade suficiente para acabar com a transmissão em suas comunidades.
Ezekiel J. Emanuel, vice-reitor para as iniciativas globais e titular da disciplina de ética médica e de políticas de saúde da Escola de Medicina da Universidade da Pensilvânia liderou o desenvolvimento do Modelo de Prioridade Justa. A Scientific American conversou com o Emanuel sobre o modelo e como poderia ser implementado.
[Segue uma transcrição editada da entrevista]
Por que é importante ter um proposta ética para a distribuição das vacinas que supere o nacionalismo?
Espera-se que exista um viés nacional, e existem bons motivos para um certo viés nacional. Mas, de um ponto de vista ético, não existe um bom motivo para um viés nacional absoluto, em que um país atende todos os seus cidadãos antes de distribuir a vacina internacionalmente. Existe um bom motivo para não haver um nacionalismo absoluto com relação à vacina. Muitos governos estão defendendo uma distribuição justa e equilibrada das vacinas. Os próprios produtores de vacina estão argumentando em prol da distribuição global, e também temos organizações internacionais, como a COVAX [uma colaboração co-liderada por Gavi, a Aliança da Vacina, a Coalização para Inovação no Preparo de Epidemias e a OMS], que disseram querer uma distribuição justa e igualitária. [Nota do editor: A administração de Donald Trump disse que não irá participar do esforço da COVAX, porque não quer trabalhar com a OMS. Essa decisão poderia limitar o acesso dos Estados Unidos a vacina contra a COVID-19 se ela for desenvolvida em qualquer outro país]. O problema é: quase não existe uma definição do que “justo e igualitário” significa, especificamente em termos de distribuição. Como somos cientistas políticos, especialistas em ética e em saúde pública, acreditamos ser os mais qualificados para entender tal definição.
Os produtores de vacina levarão em conta uma distribuição justa?
Eles vão enfrentar um desafio sobre como distribuir a vacina. Vão vender a quem oferecer mais? Existem alguns produtores que parecem inclinados a isso. Ele vão destinar parte da produção a grupos internacionais como a COVAX? Nós acreditamos que pelo menos alguns produtores reconhecem a importâncias de distribuir a vacina ao redor do mundo de maneira acessível. Novamente, diversas empresas farmacêuticas se declararam a favor dessa estratégia. Elas não parecem ter sempre o interesse do mundo em primeiro lugar, mas eu acredito que, nesse caso, muitas das principais empresas acreditam que é importante enfrentar essa pandemia globalmente, não apenas nos países onde elas estão localizadas.
Por que, na sua opinião, a proposta da OMS é falha?
Uma proposta consiste em dar a vacina para todos os países com base num percentual de sua população — primeiro para 3% de cada população do país, depois para 20%. Isso parece preencher o princípio básico da ética de preocupação moral equivalente, ao tratar as pessoas de maneira igual sem discriminação com base em raça, sexo ou religião. O problema é que é óbvio que diferentes áreas do mundo estão apresentando taxas diferentes. Geralmente, quando se fornece assistência internacional, ela se destina a quem está sofrendo mais.
Além dessa, existe a ideia de que a distribuição deveria ser baseada nas pessoas que estão em maior risco, e esse grupo é geralmente definido como a linha de frente dos profissionais de saúde e as pessoas com mais de 65 anos. Primeiro, está claro que os profissionais de saúde não estão todos no mesmo patamar de alto risco, principalmente nos países desenvolvidos, onde o uso apropriado de equipamentos pessoas de proteção diminui o risco significativamente. Mas, mais importante, a abordagem favorece os países mais ricos e desenvolvidos, porque esses países possuem mais profissionais de saúde per capita, e também possuem mais idosos.
Como você escolheu essas três bases éticas para desenvolver o Modelo de Prioridade Justa?
Bom, nós não os escolhemos. Esses são valores éticos fundamentais que vêm desde Sócrates. Podem ser observados em quase todos os países do mundo. Eles são os chamados princípios comuns. Todos acreditam que se deve limitar os prejuízos e beneficiar as pessoas, e que isso é uma obrigação moral. Está bem estabelecido que se deve ajudar os desfavorecidos. E nós todos temos a noção de que todas as pessoas querem ser tratadas de forma igual; não devemos discriminar pessoas. Estamos procurando por princípios que sejam amplamente aceitos, independentemente de visões éticas particulares.
Como a métrica SEYLL se encaixa nesses valores?
Quando se dispõe de um conjunto de valores éticos, quais as conclusões sobre distribuição que podem ser baseadas neles? Nós argumentamos que esses valores sugerem três fases da distribuição de vacina, a partir de fatores tais como o quão grave está a situação, se ela é reversível, ou se é possível compensar as pessoas de outras maneiras, caso não se distribua a vacina para elas. Nessa análise, a morte é devastador: não se pode compensar alguém após sua morte. É claramente irreversível.
Nossa principal prioridade na fase 1 deve ser minimizar o número de mortes, tanto diretamente , por COVID-19, quanto indiretamente, devido à sobrecarga do sistema de saúde. Na fase 2, nós também queremos minimizar as rupturas sociais e econômicas, que podem ser graves e devastadoras; podem durar por muito tempo e ser irreversíveis. Mas elas podem ser compensadas de outras maneiras, então devem ser abordadas.
Nós nos perguntamos quais métricas melhor representam essas fases, e foi assim que chegamos a SEYLL, porque ela leva em consideração quantos anos você viverá, em comparação à média mundial, e é uma medida uniforme entre os países.
Quais novas lições de outras crises globais podem ser informadas por esse plano?
Eu acredito que esse plano possui aplicações amplas para outras pandemias, no sentido de que claramente define quais são os principais valores éticos, como se deve pensar sobre os prejuízos provenientes de uma crise de saúde pública, e quais objetivos se deve tentar atingir. Devemos focar os fatos de uma pandemia, não é uma ética sem dados empíricos. A teoria e a prática trabalham lado a lado, e a epidemiologia irá determinar os focos, e onde fazer a distribuição prioritariamente.
Esses valores éticos são amplos, e precisamos incluí-los quando pensamos sobre problemas comuns como mudanças climáticas. Uma das coisas importantes que esse plano compartilha com as alterações climática é que ele mira o futuro. Precisamos trabalhar para diminuir os problemas que virão, não tentar achar um culpado e dar a ele a responsabilidade de achar uma solução. Essa é uma orientação muito importante: vamos olhar para o futuro e resolver o problema avançando.
Jim Daley
Publicado em 04/09/2020
O SarsCov-2. Foto de microscopia do NIAID
Fonte:: Scientific American Brasil
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